Saturday, July 17, 2010

Cântico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: "Vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar - os pés sangrentos
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas.
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!

José Régio

Beijos...beijos...e beijos...

My Dear Henry...

Hamilton abriu-me os olhos e deu-me novos valores, e embora depois tenha perdido a visão que me tinha dado, no entanto nunca mais voltei a ver o mundo ou os meus amigos como os tinha visto antes da sua chegada. Hamilton mudou-me completamente, como apenas o pode fazer um livro extraordinário, ou uma experiências extraordinária, ou uma personalidade extraordinária. Pela primeira vez na minha vida qualquer coisa pode ser a experiência de uma amizade vital, sem todavia me sentir servil ou obrigado por via daquela experiência. Mas depois de nos separarmos, senti a necessidade da sua presença efectiva; ele tinha-se dado completamente e eu possui-o sem o ter possuído. Foi a primeira experiência de amizade clara e total e nunca mais se repetiu com nenhum outro amigo. Mais do que um amigo, Hamilton era a própria amizade.

Henry Miller, in Trópico de Capricórnio